sábado, 12 de outubro de 2013

Mais uma entrevista com uma socialite

Entrevistador: - estamos aqui com ela, que sempre frequenta nosso programa, e está inaugurando sua cobertura em Nova York: Lucinha Lafourd!

Socialite: - olá, pessoal, tudo bem? É maravilhoso estar com vocês novamente.

Entrevistador: - então nossa querida socialite se mudou para Nova York? Vai fazer falta no Brasil...

Socialite: - não, não deixarei o Brasil. Eu comprei essa cobertura porque tem uma vista linda para o Central Park, daqui de cima consigo ver a cidade inteirinha. Mas jamais deixaria o Brasil. O Brasil é maravilhoso, gente! 

Entrevistador: - então foi um mimo que você deu a si mesma...

Socialite: - ai, gente, não queria falar, não, mas foi o John. O John, meu novo namorado, me deu de presente, sabe? Eu venho pra cá, tomo meu champanhe vendo essa vista linda... Não é maravilhoso, gente?

Entrevistador: - diz pra gente, por que você está toda trabalhada no verde e amarelo?

Socialite: - ah, eu estou acompanhando essa onda de protestos e torcendo muito pelo nosso povo, que é um povo sofrido. Eu acho que chegou um momento que as pessoas cansaram de corrupção, de desigualdades sociais, de falta de saúde, de educação e resolveram ir para a rua reclamar seus direitos. É isso aí, dou meio apoio daqui de Nova York.

Entrevistador: - estou vendo, comprou bandeirinhas, boné, camiseta...

Socialite: - e estou fazendo o maior sucesso aqui. Eu e uma amiga montamos uma grife que só vende esses itens. E você pode entrar na nossa página e customizar. Lá tem camisetas, broches, bonés, bolsas, anéis tudo com essa temática de hoje em dia. Aí a pessoa entra e pede, por exemplo, uma camiseta com a frase ''vem pra rua'' e a gente manda entregar onde for. Meus amigos daqui adoraram a ideia, vários deles estão comprando, porque eu digo sempre: gente, vamos torcer pelo Brasil.

Entrevistador: - e como as pessoas daqui estão encarando esse movimento que tomou conta do nosso país?

Socialite: - todo mundo acha maravilhoso. Eu fico feliz porque no Brasil nunca houve isso, nunca houve essa revolução. Aquele povo que não trabalhava, que não exigia seus direitos, não existe mais. Está na hora dessa gente mostrar que tem valor!  Outro dia, fui com John em um jantar de negócios que ele tinha com uns alemães. Eles me adoraram e perguntaram mil coisas sobre o Brasil. E nós, formadores de opinião, temos a obrigação de quebrar preconceitos, entendeu? Aproveitei e fiz a propaganda da nossa lojinha virtual, que ninguém é de ferro. Mas, gente, sério, não é porque eu tenho uma situação financeira um pouco melhor que não vou fazer parte de tudo isso que está acontecendo.
Entrevistador: - e quando você volta para o Brasil?

Socialite: - deixa passar um pouco toda essa confusão, vou curtir mais a Big Apple...

Entrevistador: - você quer deixar uma mensagem para nosso expectador que está no Brasil?

Socialite: - quero dizer que violência não está com nada, que as pessoas podem protestar, mas pacificamente, sem vandalismo. Eu fico triste quando vejo a polícia tendo que conter aqueles manifestantes mais exaltados, sabe? Mas é isso aí, vamos brindar aqui pelo futuro do nosso povo, com esse champanhe magnífico, desejando tudo de melhor. Porque, gente, o povo brasileiro é maravilhoso!
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CONFIRA AQUI A ÚLTIMA ENTREVISTA

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Cotovelo & Prazer

   Eis que surge uma nova tese. E que sirva de refrigério ao hálito tépido expelido pela Academia; o comprovamos empiricamente: cotovelos podem ser altamente libidinosos. Um toque basta. Ora, desde que a licença dominou os povos que um pulso deixou de ser objeto de desejo. Pois bem, também um cotovelo. Não, não, não que alguém vá ficar tremendamente comovido com as vistas de um. Porém, a título de prova, farei um relato: Camilinha tinha dezesseis anos e jamais houvera despertado para os amores desta vida. Mesmo que suas amigas atafulhassem seus ouvidos com relatos de descobertas feitas atrás das portas dos banheiros escolares. Estava alheia e sequer possuía curiosidade suficiente para tais movimentos. Ia de casa ao colégio, do colégio para casa. Lia revistas sobre o astro preferido e enfeitava a cama com bonecas e ursinhos. Certo dia, como o ônibus que tomara estivesse cheio, parou de pé ao lado de um rapaz, este sim, sentado. Ergueu os braços para se segurar e projetou o corpo um pouco adiante. O rapaz estava com o cotovelo apoiado no braço do assento e encontrou-se, por engano, com as intimidades de Camilinha. O balanço da condução e o tanto de passageiros que se esforçavam naquele aperto por sair, forcejavam ainda mais o toque. Foi quando ela sentiu algo diferente e baixou a cabeça para ver a quem pertencia o cotovelo: um rapaz belo, distraído, sonolento; Camilinha não fez caso e suavemente continuou o jogo de empurra. O nó da articulação pressionava o sexo fazendo-o gotejar. A menina suspirou, só não imaginou nada. Apenas entregou-se ao balanço do corpo. A respiração intensificou-se e seu arfar produzia ruídos leves. Veio-lhe a descoberta. Camilinha saltou se sentido suja, e rindo da situação. Camilinha despertou enfim a puberdade e pensou em duas pessoas sentadas, dividindo o mesmo banco, quando inopinadamente os cotovelos se esbarram: a pele, tecido elástico, afunda e adere. Um contato corpóreo entre seres mutuamente desconhecidos. E basta um instante para que estejam ligados, numa troca despropositada. Ali se dá um encontro e margem a mil pensamentos, ou a nenhum, apenas à sensibilidade e o efeito de um beijo, de um abraço, de um aperto, de um arrepio. Camilinha nunca escondeu os pulsos, os ombros e os tornozelos. Ela percebeu, entretanto, o que suas amigas no banheiro jamais perceberiam: um toque responde por mil sensações e, convenhamos, cotovelos são bem persuasivos! 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Eu Matei Roderick D.

   É difícil admitir, mas ele era meu irmão. Saiu aos vinte e um anos de casa e sumiu. Ficamos sem saber o paradeiro dele por uns três anos, até que, passando diante de uma banca de jornal, vi seu rosto estampado em uma publicação pornográfica. Imagine o tamanho do meu aturdimento ao vê-lo naquela revista. Tanto tempo sem notícias para reencontrá-lo assim, sorridente, de capa, seminu e abraçado a uma mulher. O título que trazia era infame e o nome, bem, o nome não era mais aquele, era Roderick D.: descrito como um elemento viril e belo; exposto, entretanto, feito carne, trespassada por um gancho na vitrine de um açougue.
   Levei a revista para casa e assisti o filme do encarte: Roderick coadjuvava a maior parte das cenas, emprestando seu nome, quase consagrado, para vender uma quantidade maior de publicações do gênero. Era estranho, muito estranho, ver meu irmão daquela maneira. Não pensei tanto na vergonha que causaria aos meus pais, todavia no que levava uma pessoa a dispor de seu corpo para o consumo geral, tornando públicas suas intimidades, suas reações, seus desejos, para que outros gozassem por ela. Seria o dinheiro? Nunca lhe faltou nada! Não poderia ser por necessidade, oras! O que o levaria a deixar sua família para ganhar a vida desta maneira? Não pude responder. Roderick continuava lá, gemendo e trincando os dentes, para inundar repetidamente o corpo de suas parceiras com líquido grosso e quente.
   Chorei. E mais do que isso: estive perturbado por uma semana. Concluí que estávamos todos doentes: eu, meus pais, meu irmão, aquelas mulheres e seus consumidores. Chorei e tive raiva. Meu pai e minha mãe não mereciam o desgosto de ver o filho, constantemente rememorado e sentido, transformado agora em... Em... Roderick D! Passei, então, a adquirir tudo o que dissesse respeito a ele: filmes e revistas no intuito de descobrir seu paradeiro. Foi quando encontrei o telefone de uma produtora e lá me deram sua direção: estava em São Paulo. Pedi o carro a meu pai e viajei por mais ou menos seis horas. Fui achar seu endereço na região central da cidade; num trecho conhecido por ser reduto de viciados e bandidos de toda espécie. Ali havia acomodações das mais baratas. Parei diante de um prédio antigo, geminado a um hotel, cuja entrada ladeava uma loja de ferragens. O portão estava só encostado, e após atravessar um longo corredor, subi as escadas até o terceiro andar. Bati na porta, ele atendeu. Passado o instante de surpresa, abraçou-me e pediu que entrasse. 
-Como me achou? - Ele perguntou.
-Numa revista...
-Eu me refiro ao endereço...
-Por que você sumiu?
-Olha só, caso tenha vindo para me admoestar e convencer a voltar para casa, desista! Não vou voltar!
-E você acha que isso é vida?
   O apartamento era de quarto e sala. Ali moravam ele e mais três. Os cômodos estavam bagunçados e cheiravam mal. Muita louça na pia; cinzas de cigarro, pacotes, garrafas, roupas molhadas, tudo espalhado. 
-O papai não vivia reclamando que eu não arranjava emprego? Pois bem, arranjei! E agora ganho dinheiro, maninho, dinheiro fácil! Fora que me divirto a beça! - Disse acendendo um cigarro - posso oferecer alguma coisa ou ainda continua careta? 
-Fa...
-Não, não, não! Aqui eu sou Roderick, entendeu? 
-E continua sendo meu irmão?
-Claro! E se você quiser, falo com uns conhecidos meus e coloco você em alguma cenas, que tal? Atualmente estou tirando uns três mil por cada uma. Fiquei famoso, reconhecido e agora as produtoras me disputam, sabe? Você não precisa voltar para aquela vida. E aí, o que me diz?
-Ficou louco? Eu vim somente saber de você...
-Melhor não falar nada para o papai e para mamãe. Diz que me encontrou, que estou bem, que estou trabalhando em um escritório. Ninguém quer matar os velhos do coração!
-Não quer saber como eles estão, como ficaram após sua partida? Não passam um dia sem falar em você e eu já vi mamãe chorando várias vezes olhando uma fotografia sua...
-Hum... Eu lamento... Bem, está chegando a hora da minha apresentação, tenho que tomar banho...
-Apresentação?
-Sim, faço apresentações em casas noturnas para complementar a renda e, às vezes, saio com as clientes.
   Roderick, além de ator, fazia apresentações onde tirava a roupa e servia de michê. Atendia todo o tipo de público: mulheres solteiras ou casadas, sozinhas ou acompanhadas de seus maridos; homens jovens e velhos. Cobrava duzentos pelo serviço de uma hora - gozando no final, está tudo certo! É só fechar os olhos e mandar ver!- Disse ele cinicamente. De verdade, não reconheci meu irmão. Esgueirando-se pelos buracos da noite, privando com gente torpe e hipócrita, míseros arremedos de uma sociedade enfermiça.
-Fique aí. Pode dormir no meu colchonete. E não se importe se o pessoal voltar, são gente boa. Hoje não tenho hora. 
   Não dormi. Passei a madrugada pensando em tudo aquilo. Andei de um lado a outro. Vi mais publicações, mais vídeos dele onde contracenava com mulheres, homens, travestis, a dois ou em grupo; cenas onde havia violência, escatologia e, sobretudo, a profanação do próprio corpo. Interroguei-me enfim: isto é liberdade? Então descobri nas gavetas de uma pequena cômoda, sacos onde havia todo o tipo de entorpecentes e seringas. Era naquilo que meu irmão investia seus ganhos. 
   Eu juro, foi a decisão mais difícil que tomei. Sabia que jamais apagaria aquilo dele, mesmo que amanhã seu arrependimento fosse maior. Reuni coragem e me convenci de que aquela era a única saída, demonstração original de afeto: levaria paz àquele espírito e interromperia definitivamente sua marcha de leviandade cega!
   Peguei os comprimidos e amassei junto com um pó branco, joguei tudo dentro de uma garrafa com uísque e misturei calmantes. Quando ele chegou, por volta das nove da manhã, ofereci a ele a bebida, afirmando que havia mudado de ideia e que iria ficar. Contente, ele pegou o copo, sem pensar muito e brindamos. 
-Finalmente meu irmãozinho deixou de ser careta! - Deu uma talagada. Insisti para que tomasse mais. E depois de três copos, resolveu que iria dormir. Mas era tarde. Caiu no soalho e começou, em delírios, a sufocar. Convulsionou e expeliu uma baba branca. Dentro de alguns minutos, parou de se debater - estava morto. Desci, peguei o carro e voltei para casa. Ele seria mais um que não aguentou aquela vida e se matou. 
   Mamãe ficou feliz em saber que meu irmão estava casado e empregado em um escritório e ansiosa por vê-lo no Natal. 
   Eu, no entanto, repito para mim mesmo diariamente: eu matei Roderick D. 

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Aqueles Olhos (poesia em prosa)

   Aqueles olhos perderam toda a humanidade. Sentado ali, em um beco, na porta cerrada de um prédio, de fronte a um restaurante, silenciava. Não pedia esmolas; sequer comida. Apenas olhava, olhava - olhava o vazio; o vazio das gentes que passavam - indiferentes, inconsequentes, distraídas, ocupadas. Rosto pobre, mas olhos ricos, de filosofia, talvez, de saudosismo e de esperança. Antes tinha sede de tornar-se algo, até ficar invisível. Ainda que fosse uma cadeira onde o puxariam, acomodariam; pode ser que o elogiassem e se regozijassem de estar. Ou um vaso contendo terra, grande, ornamentado, frondoso. Entretanto, nem mais os vasos gozavam de notabilidade. Eram tão-somente passagem - tal como o beco, tal como ele.
   Os olhos vívidos, porém, no corpo agonizante, percebiam que ora vinha um homem, ora ia uma mulher. Não! Ora ia um pai, ora vinha uma esposa; ora vinham o chefe e a diretora. Sentavam à mesa, almoçavam, riam, falavam mal do trabalho, reclamavam de cansaço. O cheiro do perfume se misturava ao da carne assada; ao do cigarro posto fora, do vinho nos cacos sobre as pedras do chão; do cafezinho, dos dois beijinhos, da despedida, da ausência. E eis que lá foram seu pai e sua mãe. Seus irmãos, quem sabe? Amigos - que jamais se dignaram a retribuir aqueles olhos.
   A luz da tarde caiu pouco e pouco. A luz dos postes e dos estabelecimentos acendeu. O restaurante desceu as portas. Os transeuntes tornaram um ou dois. Depois o calar da noite. Nada mais ali. Permaneceu, contudo, de cócoras, encolhido e leve. Descalço, sentiu entre os dedos a urina quente escorrer-lhe, molhando o calção ensebado. Não mais se constrangia. Era como se um animal o fizesse - as pessoas costumam dar de ombros. Deu também; deu de si, para si: aliviar-se era um prazer. Último dos quais possuiu algum dia. 
   Veio a chuva, o frio, lavando-lhe o corpo. Sorriu e fechou os olhos. Eis que Deus o abençoa, o benze - e o chama, enfim. E antes que viesse a aurora, um homem louro, trajado de um casaco de couro preto, pôs as mãos em sua face, nos olhos que insistiam em ver, e pronunciou: - bem-aventurada alma da rua, hoje o Paraíso é teu, apenas teu!
   Aqueles olhos indigentes se descarnaram... 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

saLdades eternas

  Bete era uma ex-atriz; malograda, diga-se de passagem. Não passou de apresentações de várzea e o máximo a que chegou foi a encenação em uma quermesse. Porém, nutria a fantasia de que era, ou seria em qualquer dia, algo reconhecida, pois mantinha viva a chama poética correndo em suas veias dramáticas. Quando afirmava isso, estava já a tal ponto alta que ninguém lhe levava a sério. E não era de se levar. Bebia um vinho, uma cervejinha, dançava em seus tamanquinhos uma melodia mais agitada e recitava Pessoa. Depois alguém a carregava para casa. 
  Feiosa, estrábica, roliça, mulher de meia-idade, aparecia sempre com roupas impróprias: uma sainha mais curta, um vestido mais apertadinho; somando às unhas vermelhas, à meia arrastão, aos beiços roxos de batom. Tingia os cabelos e, por fim, nada combinava. Gostava de jovens, jovenzinhos, sabe? Podia ter uns vinte, uns trinta; mas velho acima dos sessenta? Jamais! Queria roçar as coxas entre as pernas de um pangaré, sentir uns braços fortes lhe agarrando, uma respirada mais contundente em seu perfume barato, seus seios esmagando-se em peito cabeludo. Entretanto, ninguém queria deitar-se com Bete.
  Possuía uns amigos desvairados, amigos de bar. Amigos de palavreado frouxo, baixo; amigos sem amarras, sem pudores - personagens decadentes que, por discutirem política ou qualquer filosofia torta, odiarem religião, xingarem o pai e a mãe, terem um filho em cada casa; descobrirem autores que ninguém lia, no olhar de Bete eram seres arrojados, embora não fossem além de bêbados enfadonhos.
  Nas festas, Bete dava vexame. Não que se embriagasse. Catava os doces, pedaços de bolo, arranjos da mesa, enfiava tudo na bolsa; e no velório? Bem, a viram fazendo sinal para um carro carregando uma coroa de flores. Por isso todos falavam dela. Sorriam risos mascarados, e falavam dela. Tanto que pararam de convidá-la, fosse para o que fosse. E ficava ela, no quarto e sala alugado cheirando a mofo, sobrevivendo do que não fora...
  Três semanas se passaram sem que vissem Bete novamente. A síndica foi cobrar as taxas atrasadas. Bateu, bateu, esmurrou a porta - e nada... Nada! Bete havia sentado em frente a uma penteadeira, cheia de fotografias presas aqui e lá. Lembravam o passado, de quando era jovem, de quando era... Sei lá. Só via agora uma boneca triste, desengonçada, de quem todos recordavam com graça, a quem nunca um homem quis se unir. Esticou a face e concluiu: ''estou velha e não vi o tempo passar''. Esvaziou uma cartela de calmantes e virou um copo de conhaque ordinário. Deitou-se na cama desarrumada com suas fotografias...
  Três semanas se passaram e encontraram apenas um corpo que dormitava. Na capelinha, somente a síndica compareceu. Uma velinha de sete dias brilhava e na parede, uma coroa onde estava escrito: ''saLdades eternas''.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nova Entrevista com uma Socialite

Entrevistador: - Estamos aqui, no Copacabana Palace, na festa de Ano-Novo com essa figura ilustre da sociedade carioca...

Socialite: - Obrigada, é maravilhoso estar com vocês novamente!

Entrevistador: - A festa está linda e você, mais ainda!

Socialite: - Gostaram? A festa tem o tema da prosperidade! Por isso fiz questão que, além do branco, tivessem muitas coisinhas douradas.

Entrevistador: - Como esse seu vestido? Dá uma voltinha para a gente ver...

Socialite: - Não é maravilhoso? Todo bordado com fios de ouro. É de uma grife italiana, feito sob medida! Aí eu decidi colocar anéis, braceletes, colar, brincos, tudo de ouro também para combinar!

Entrevistador: - Assim, o ano vai ser mesmo de muita fartura, de muita prosperidade...

Socialite: - E de paz, não é, gente? Acho que o Brasil está precisando de paz. E não só o Brasil como o mundo também!

Entrevistador: - O próximo ano tem que ser bom, porque esse não foi muito bom para você, né?

Socialite: - É verdade! Tive que fechar duas ongs, me divorciei do meu terceiro marido...

Entrevistador: - Mas foi uma separação amigável?

Socialite: - Que nada! Imagina que ele queria me dar uma pensão de dezessete mil reais! Meus advogados entraram com uma ação e pediram trinta. Ele é empreiteiro, tira no mínimo quinhentos por mês e quer me dar só dezessete mil? Meus dois outros ex me dão mais, por que ele não vai dar? Eu tenho um filho com ele, você sabe, e por causa dessa sociedade machista, eu é que vou criar, entendeu? E a responsabilidade dele como pai?

Entrevistador: - Ah, o ano que vem será melhor!

Socialite: - Com certeza! Estou aqui, tomando champanhe, nessa noite linda, para festejar esse novo ano que promete!

Entrevistador: - E quais são seus planos?

Socialite: - Recebi um convite para posar nua pela terceira vez. Pela terceira vez serei rainha de bateria. E quero abrir outra ong voltada para o tratamento de pessoas na melhor idade.

Entrevistador: - Tudo três?

Socialite: - Tudo três! Meu número da sorte nesse ano!

Entrevistador: - E que mensagem você quer deixar para os nossos telespectadores?

Socialite: - Eu estou aqui, na grife, no champanhe, toda trabalhada no ouro para desejar a todos um ano maravilhoso, sem violência e sem desigualdade social! Fiquem com Deus!
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VEJA AQUI A SEGUNDA ENTREVISTA

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Negrinho do Sinal

   O negrinho do sinal é compositor. ''Mas como?'' - perguntou a minha esposa; ué, estou dizendo, ele é compositor! - ''Ah, sei, esse negrinho é compositor? E compõe o quê?'' - Ópera, é acho que é isso sim. Noutro dia ele cantarolava um trecho enquanto distribuía os saquinhos de bala pelos retrovisores. - ''Ópera? Sei, e como ele compôs essa ópera se ele não tem instrumentos, não sabe tocar e provavelmente jamais ouviu uma ópera?'' - E artistas lá precisam disso? O talento nasce com eles, precisam apenas moldá-lo, burilá-lo, entendeu? - ''O garoto nem deve saber ler, vai compor algo tão difícil quanto uma ópera? Ah, faça-me o favor!'' - Você não comentava ontem sobre uma garotinha alemã que compôs sua própria sinfonia aos seis anos? Ele deve ser pouco só mais velho. - ''Mas a garota tinha formação, estudo, um meio bom, era alemã!'' - Olha o menino lá, o sinal fechou, vem ele... Aí, passou, ouviu? Ele está sempre cantarolando. - ''E como sabe que isso é ópera? Isso pode ser mais uma dessas músicas malucas!'' - Eu conversei com ele, oras - minha esposa riu alto.
   Certa vez, meu carro enguiçou ali. Enquanto eu esperava o guincho, o menino franzino, descalço e usando uma bermudinha azul, veio até mim. Tentou vender as balinhas, dessas que ele vende no sinal. Não quis porque não gosto de balas. Porém, isso foi pretexto para entabularmos uma conversa. Quando ouviu a música que tocava no meu rádio, perguntou: - é Mozart? - Não preciso dizer que fiquei surpreso - você conhece Mozart? - Creio, aliás, que nossa conversa começou a partir daí. Respondeu que sim, que adorava. A mãe dele trabalhou durante algum tempo fazendo faxina na casa de um velho compositor e o levava junto, pois era bem pequeno. O velho ouvia muito a Mozart, Beethoven, Chopin e as principais óperas. Foi assim que tomou gosto e aprendeu um pouquinho sobre música, instrumentos, porque o velho apreciava muito a companhia do jovenzinho, porquanto não tinha família. Morreu, parece, no ano passado. A mãe ficou desempregada e ele precisou vir para a rua. Foi aqui, entre o abrir e fechar do sinal que ele compôs a ópera! Chama-se O Viaduto. Começava com dois homens sentados nesses jardins, esses que ficam em meio as ruas, debaixo de um viaduto. São dois vendedores e cantam ''os jardins improváveis da vida florescem no asfalto, oferecendo descanso no oásis do deserto de piche''. Acho que é isso.
   - Então quer dizer que esse negrinho tem refinamento suficiente para compor uma ópera? Sinceramente, prefiro Beethoven! - Retrucou minha esposa descrente. - minha querida - disse eu - você nunca gostou de Beethoven, de ópera ou coisas afins, como pode avaliar a capacidade dele? - E ela, gritando no banco do carona: ''- o quê? Está insinuando que eu sou uma mulher inculta? Não é possível que...''
   Ela iria continuar, contudo o sinal abriu. Dei a partida e a discussão se encerrou.