quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Negrinho do Sinal

   O negrinho do sinal é compositor. ''Mas como?'' - perguntou a minha esposa; ué, estou dizendo, ele é compositor! - ''Ah, sei, esse negrinho é compositor? E compõe o quê?'' - Ópera, é acho que é isso sim. Noutro dia ele cantarolava um trecho enquanto distribuía os saquinhos de bala pelos retrovisores. - ''Ópera? Sei, e como ele compôs essa ópera se ele não tem instrumentos, não sabe tocar e provavelmente jamais ouviu uma ópera?'' - E artistas lá precisam disso? O talento nasce com eles, precisam apenas moldá-lo, burilá-lo, entendeu? - ''O garoto nem deve saber ler, vai compor algo tão difícil quanto uma ópera? Ah, faça-me o favor!'' - Você não comentava ontem sobre uma garotinha alemã que compôs sua própria sinfonia aos seis anos? Ele deve ser pouco só mais velho. - ''Mas a garota tinha formação, estudo, um meio bom, era alemã!'' - Olha o menino lá, o sinal fechou, vem ele... Aí, passou, ouviu? Ele está sempre cantarolando. - ''E como sabe que isso é ópera? Isso pode ser mais uma dessas músicas malucas!'' - Eu conversei com ele, oras - minha esposa riu alto.
   Certa vez, meu carro enguiçou ali. Enquanto eu esperava o guincho, o menino franzino, descalço e usando uma bermudinha azul, veio até mim. Tentou vender as balinhas, dessas que ele vende no sinal. Não quis porque não gosto de balas. Porém, isso foi pretexto para entabularmos uma conversa. Quando ouviu a música que tocava no meu rádio, perguntou: - é Mozart? - Não preciso dizer que fiquei surpreso - você conhece Mozart? - Creio, aliás, que nossa conversa começou a partir daí. Respondeu que sim, que adorava. A mãe dele trabalhou durante algum tempo fazendo faxina na casa de um velho compositor e o levava junto, pois era bem pequeno. O velho ouvia muito a Mozart, Beethoven, Chopin e as principais óperas. Foi assim que tomou gosto e aprendeu um pouquinho sobre música, instrumentos, porque o velho apreciava muito a companhia do jovenzinho, porquanto não tinha família. Morreu, parece, no ano passado. A mãe ficou desempregada e ele precisou vir para a rua. Foi aqui, entre o abrir e fechar do sinal que ele compôs a ópera! Chama-se O Viaduto. Começava com dois homens sentados nesses jardins, esses que ficam em meio as ruas, debaixo de um viaduto. São dois vendedores e cantam ''os jardins improváveis da vida florescem no asfalto, oferecendo descanso no oásis do deserto de piche''. Acho que é isso.
   - Então quer dizer que esse negrinho tem refinamento suficiente para compor uma ópera? Sinceramente, prefiro Beethoven! - Retrucou minha esposa descrente. - minha querida - disse eu - você nunca gostou de Beethoven, de ópera ou coisas afins, como pode avaliar a capacidade dele? - E ela, gritando no banco do carona: ''- o quê? Está insinuando que eu sou uma mulher inculta? Não é possível que...''
   Ela iria continuar, contudo o sinal abriu. Dei a partida e a discussão se encerrou.

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